Elite do Atraso
O livro A ELITE DO ATRASO – DA ESCRAVIDÃO À LAVA-JATO, de Jessé Souza foi lançado em 2017, e foi a versão lida por mim já em 2023. Dito isso, é importante lembrar que existe uma versão atualizada, contemplando a ascensão de Bolsonaro em 2019. Apesar de gostar de acompanhar com uma certa distância os embates políticos e não ser uma pessoa extremamente politizada (ainda que tenha princípios fortes) achei o livro de uma leitura razoavelmente fácil para quem não está habituado com esse tipo de literatura.
Acredito que marquei poucos pontos, e o livro não acrescentou tanto assim no conhecimento/opinião que tenho quanto a “atual” conjuntura política do país, seus desdobramentos e, enfim, sub desdobramentos. Em 2023 a extrema direita perdeu as eleições do mais alto poder executivo (mas ainda detém bastante influência no legislativo).
Quanto a política, aguardemos os anos que estão por vir, no Brasil e no mundo.
Abaixo, seguem meus destaques do livro “A elite do atraso”.
O racismo de nossos intelectuais
Gostei de como o livro começa: “o dinheiro é uma mera convenção e só pode exercer seus efeitos porque está ancorado em acordos políticos e jurídicos que refletem o poder relativo de certos estratos sociais”. É sempre bom lembrar que, basicamente tudo que nos rodeia são convenções sociais.
Isso não altera por si só a realidade, mas é um lembrete que podemos alterar a realidade ao mudar os acordos, ainda que isso seja muito difícil e por vezes seja necessário o passar de gerações para que uma mudança seja efetiva.
Quer ver um exemplo de convenção que mudou, mas ainda não totalmente? Até 1920 a cor da pele era uma explicação cientificamente válida para explicar diferenças entre desenvolvimento de diversos povos. O avanço da ciência provou que isso não era verdade, mas a convenção, o contrato social permaneceu. Nas ciências sociais o termo racismo foi substituído por culturalismo, mas a realidade nos mostra que a cor ainda é percebida como um fator altamente relevante (fica aqui o convite para que eu mesma leia e quem porventura esteja por aqui sobre Racismo Estrutural do Silvio Almeida).
A mudança semântica nas ciências sociais é apenas uma mudança semântica, pois cumpre as mesmas funções do racismo outrora científico. Ela tem como princípio legitimar a dominação de um povo dito superior (EUA/europeu).
Se você se esforça para tratar o outro como igual, então você é estruturalmente racista.
Um brasileiro classe média que não é abertamente racista se sente superior em relação às camadas populares do próprio país, como um europeu/estadunidense se sente em relação a um brasileiro: ele se esforça para tratar essas pessoas como se fossem iguais a ele.
Esse sentimento é resultado de uma doutrinação histórica. As ideias dominantes perduram ao serem repassadas entre as gerações, e cada um a repete no piloto automático [é como a reflexão que agora, no início dos anos 2000 inicia-se uma discussão aberta se cantar Atirei o pau no gato, olha a cabeleira do Zezé e os Escravos de Jó é ou não “legítimo”]. O maior problema dessa forma de opressão é que elas são invisíveis não só para quem oprime, mas também para o oprimido (negro que é racista).
O argumento de Jessé (aqui bem simplificado) caminha para dizer que o desmonte que a Lava Jato fez no país ocorreu somente porque temos uma sociedade nas mãos desse culturalismo, que se sente inferior, cada nível social “em seu quadrado”.
Colonizar o espírito e as ideias de alguém é o primeiro passo para controlar seu corpo e seu bolso.
Cada ação que realizamos está ancorada em uma ideia, um norte moral que nos permeia. Assim, quem controla a produção de ideias dominantes, controla o mundo. Para Jessé, a ideia do racismo cultural é mais vantajosa, e vai acabar suplantando em totalidade o racismo fenótipo com o tempo. É importante frisar aqui que o autor fala em vantajosa em termos de ser mais efetiva para o domínio (e não que ele concorda com a ideia!).
Para o Brasil, o racismo cultural se consolida com Gilberto Freyre, que sistematizou e construí a versão dominante da identidade nacional luso-brasileira. Essa versão foi criticada por Sérgio Buarque de Holanda, no livro Raízes do Brasil. Na verdade essa parte em que ele discute Freyre/Buarque não anotei o suficiente para conseguir consolidar a diferença entre os dois, então tenham em mente que aqui faltam alguns pontos.
Resumindo, o culturalismo está intrincado na nossa sociedade, e cada brasileiro cresce ouvindo uma ladainha que corrobora essa tese: que existem extratos superiores (do pobre, a classe média, aos super-ricos e aos europeus) e que devemos combater uma corrupção que existe somente no estado/política (como se os políticos não fosse um recorte da sociedade).
A escravidão é o nosso berço
O culturalismo só funciona porque é uma “explicação dominante que esclarece as três dúvidas fundamentais: de onde viemos, quem somos e pra onde vamos”. Uma ideia dominante é passada pelas gerações através das instituições, começando pela família (Através da criação dos pais/responsáveis), escola e depois o trabalho. São os olhares dos colegas que nos reprimem ou não que nos fazem fazer certas escolhas. Ir contra esses olhares é sempre um ato de coragem.
Portugal era um país pequeno, com uma população baixa. Como dominar toda a extensão do território nacional, em uma época que o domínio era sinônimo da presença humana na terra? Os portugueses adoraram uma técnica “árabe” e não “europeia”, a da poligamia. Assim nasce uma escravidão sexual no Brasil. A forma como isso se dá é forçada, e não por uma “perversão natural dos portugueses”. Isto é, a ausência do Estado gera oportunidade, e o incentivo para uma procriação desperta um “desejo”.
Na obra de Gilberto Freire, o patriarcalismo é definido como o sistema que não impõe limites à autoridade pessoal do senhor de terras e escravos. E esse regime reinou no Brasil colônia, império e república, pois seus vestígios seguem vivos na criação de filhos, nas obras de Machado de Assis, nas mídias sociais que objetificam a mulher.
A poligamia serve bem ao patriarcado, pois a família estendida, por assim dizer, é um elo forte para a expansão do “império” de terras, controle de escravos, além de força militar pela manutenção da terra “conquistada”. Nos EUA, todo esse controle era feito praticamente de maneira exclusiva por brancos, mas no Brasil, os capatazes eram majoritariamente mestiços (filhos do senhor português com escravos ou índios, mas majoritariamente escravizadas).
A industrialização é responsável por uma nova hierarquização social, em que o poder migra do campo para a cidade. Contudo, o patriarcalismo continua, pois o ser dominante segue sendo o dono do capital (antes terra, agora negócio). Não nos esqueçamos que o Brasil ainda tem como pano de fundo uma experiência peculiar: a vinda da família real, com todos os seus burocratas, serventes e 1/3 do tesouro português desembarcam no Rio de Janeiro para iniciar a consolidação de uma sociedade opressora e semi-industrial no Brasil. Nesse ponto, o patriarcalismo deixa de ser absoluto (tendo como centro apenas o senhor de terra daquele ponto) para ser sistêmico, em que um código de valores impessoal e abstrato toma conta da sociedade (por um tempo, temos a figura do rei, depois do imperador, mas logo entramos na república e ditaturas e nova república… nesses casos, temos uma rotatividade de poder, e o que rege o pais são mais os códigos intrínsecos que a figura em si do patriarca).
A mudança burguesa joga o padrão português como símbolo de mau-gosto, como se não fossem “europeus de verdade” e a burguesia passa por uma fase inglesa. A moda com tecidos grossos e impróprios para o clima se inspira na Inglaterra, cerveja e pão são introduzidos na alimentação e o talento individual do conhecimento começa a ser valorizado em detrimento do trabalho manual, que agora pode ser realizado por máquinas.
As classes sociais do Brasil moderno
Após a abolição da escravatura, a leva de imigrantes que chega ao país toma um espaço social intermédio entre a classe dominante e os ex-escravizados. Já acostumados com o trabalho “livre”, as terras cultivadas por imigrantes eram mais produtivas. Os negros, sem ainda acesso direto ao conhecimento necessário para a gestão do plantio tomaram lugar (ou permaneceram) no mais baixo degrau social.
O tempo passa, e as divisões dos extratos sociais começam a se tornar mais opacas. Não é mais uma questão de negros, imigrantes e luso-brasileiros. Uma classe dita média reprime aqueles de baixa renda, e quem é quem não está claro nessa dança das cadeiras.
As classes sociais são produto de um processo histórico, e não são definidas apenas por um poder aquisitivo (como a mídia/pesquisas podem nos fazer pensar). A luta de classes é, ao fim e ao cabo, a luta pelo capital, não no sentido monetário apenas, mas no domínio dos meios de produção.
É o monopólio de capital que garante o privilégio.
O capital também pode ser conhecimento. O autor passa um tempo explicando sobre meritocracia e porque ela não existe [mas deixemos isso para um outro livro]. Vale apenas pontuar aqui que, uma vantagem da classe média é poder “comprar” ou “bancar” seus filhos até certa idade para que possam dedicar sua vida apenas para o estudo (e muitos, para um lazer desmedido, mas esse também é outro problema que não nos aprofundaremos agora). Os filhos de classes mais pobres geralmente conciliam estudo e trabalho tão cedo quanto 11 ou 12 anos. Ele ainda aponta para o desenvolvimento cognitivo “natural” que ocorre nos filhos de classes mais altas, que são incentivados desde pequenos a focar ou a realizar atividades como leitura e imaginação. Tudo isso os ajuda na escola, o que vira uma bola de neve para o desenvolvimento e desenrolar de suas carreiras.
O pobre, com dificuldades de acompanhar a escola e ter sucesso na carreira mais tarde, reforça uma tese de não merecimento que é falsa, pois o resultado nada mais é do que o produto de todas as infortuidades acumuladas ao longo da vida.
O pacto antipopular da elite com a classe média
O Brasil não é exatamente um país politizado. A greve geral de 1917 foi o equivalente a Comuna de Parias (1871). A próxima intervenção da classe trabalhadora veio somente 50 anos depois. Com Getúlio Vargas e o Estado novo passamos a ter um estado interventor e reformador, em um país que começava a se industrializar na mão de Getúlio.
Getúlio é um momento de transição para o país, e apesar de representar a burguesia (e não o povo, apesar de populista), não tinha seu apoio incondicional.
A classe média e a esfera pública colonizada pelo dinheiro
A elite manda no país porque detém o dinheiro que rege a economia e constrói, através do controle massivo das mídias, a opinião popular. O rádio foi o primeiro meio para manipulação, mas a TV foi o salto que qualquer tirano desejaria ter para si.
Aqui, é importante dizer que existe a TV estatal, que cuida da propaganda do governo, mas também existe a TV pública. TV pública foi um importante instrumento na Europa para garantir uma programação que não estivesse necessariamente alinhada nem servisse de forma exclusiva quem estivesse no poder. AS TV públicas possuem conselhos, que não estão atrelados ao partido político que ganhou as eleições, e tem uma ligação profunda com o público. Elas funcionam (ou funcionavam) maravilhosamente bem nos países de democracia forte (Inglaterra[BBC],França[FT], Alemanha[ARD], Itália[RAI], Portugual[RTP], Espanha[TVE]). No Brasil, a TV pública (ou aberta) passou pelo sistema capitalista, e existe para lucrar (e manipular).
A ausência de pluralidade de informações e opiniões na grande impressa gera seres humanos facilmente influenciáveis e manipuláveis e incapazes de pensar por si mesmos.
Aqui, uma nota que o autor não chega a destrinchar (e talvez porque o livro é de 2017) mas o problema das redes sociais apenas ressaltou essa manipulação. Produzir conteúdo ficou mais fácil, e temos muitas vozes pulverizadas, contudo, poucas se destacam a ponto de realmente atingir os milhões que a TV aberta ainda capta. Além disso, os algoritmos nos viciam nos mesmos temas, gerando nossa bolha de conforto e recorte inconsistente do mundo real.
O moralismo patrimonialista e a crítica ao populismo como núcleo do pacto antipopular
Uma característica marcante da classe média brasileira é que ela não é homogênea. Não é necessariamente conservadora nem aliada aos radicais de esquerda. O que tem em comum é seu privilégio invisível (como acesso a mais cultura e educação desde a infância, que só aí já dá mais oportunidade e facilita o desenvolvimento cognitivo, pensamento perspectivo etc.), o que gera uma falsa moralidade e senso de meritocracia que é, ne verdade, inexistente.
Para Jessé, está claro que a classe média ainda é refém de conceitos que precisa desconstruir, e é facilmente manipulada pela elite do dinheiro, a única classe que tem consciência real do que é, do que quer e do que precisa fazer. A elite do dinheiro é invisível, ela não é a elite que se desponta com o patrimonialismo. A elite do dinheiro controla o mercado financeiro e a grande mídia.
O autor, inclusive, evidencia que o fim da ditadura se deu muito mais pela elite do dinheiro, que passa a apoiar movimentos populares de Diretas Já, pois não concordava com os planos de Geisel para a economia. Quando não percebemos conscientemente o que determina nossa ação e nosso comportamento, isso só significa que o grau de manipulação é mais efetivo. E é assim que a elite do dinheiro domina a classe média brasileira.
Os privilegiados não querem apenas exercer o privilégio, mas querem também que esse mesmo privilégio seja percebido como merecido e como um direito. – Weber
Nossa herança, no final, não é portuguesa, mas escravista. Da escravidão herdamos um senso de superioridade, de que o outro não merece ser feliz ou o básico (saúde, educação, moradia). Cria-se uma divisão entre “gente” e “não-gente”, que normaliza a extrema pobreza, os moradores de rua, as casas insalubres da favela e dos palafites… coisa que só existe nos países que viveram a escravidão (como o Brasil, EUA e África do Sul).
Jessé também toca no ponto de que a corrupção da elite do dinheiro se dá com a forma de ganho de capital. Estima-se que há uma evasão fiscal da ordem de 520 bilhões de reais anuais dos super ricos. Essa evasão se dá devido a manobras que andam na linha da moralidade e da lei. Além disso, existem outros bilhões não computados pelo fato de que essa elite não paga imposto pois vive de dividendos (não tributados) e juros de dívida pública por emprestar para o próprio país que vivem.
Os pobres (aqueles que ganham até 3 salários-mínimos) são responsáveis por 53% do orçamento brasileiro, mas não conseguem ver as injustiças das leis aprovadas que beneficiam os ricos, simplesmente porque são manipulados pela mídia (que, por sua vez, é controlada pelos ricos). A manipulação se dá reforçando as crenças de superioridade advindas desde nosso passado escravocrata. No capítulo seguinte ele também coloca um estudo que demonstra como a dívida do Estado vem muito mais (98%) de uma alta taxa SELIC do que dos gastos do mesmo com saúde, educação etc. Esse dado mais uma vez demonstra como estamos na mão dos endinheirados do país.
Mesmo quem critica os preconceitos os tem dentro de si como qualquer outra pessoa criada no mesmo ambiente social. O que nos diferencia é a vigilância em relação a eles e a tentativa de criticá-los do modo refletido em alguns e não em outros. Todos somos vítimas da cultura passada desde tenra idade por nossos pais e familiares, não através de um discurso bem articulado, mas de um conjunto de práticas, olhares e inflexões na voz, que nos moldam e doutrinam.
A corrupção real e a corrupção dos tolos
Nessa parte do livro, o autor analisa três vertentes da classe média, segundo as divisões dele sob a figura de três expoentes da sociedade:
- Deltan Dallagnol, representante da classe média pró-fascista
- Ministro Luis Roberto Barroso, representante liberal
- Fernando Haddad, representante dos críticos esquerdistas
Com exemplos de posts dos três, ele exemplifica essa divisão representativa, e coloca que todos os grupos veem a sociedade sob uma ótica patrimonialista e não escravocrata. Assim, Jesse encerra o livro e sua tese, na tentativa de apontar os principais “erros” da classe média e sua visão de mundo, que vê a corrupção apenas do lado que seus líderes (dentro da divisão apresentada acima) apontam, e minimizam ou não se indignam da mesma proporção quando ela ocorre em seu nicho.
O autor também lembra que, os EUA é um país capitalista desenvolvido em que o patrimonialismo e o Estado forte e interventor está presente (ao contrário que a direita pró-fascista faz crer). Foi bancando a construção de ferrovias, estradas e universidade que o Estado americano turbinou o seu crescimento, incluindo práticas protecionistas e tarifas alfandegárias.
Jessé também aponta a hipocrisia atestada da Rede Globo, que aponta práticas fascistas e manipulatórias ocorridas nos EUA durante a ascensão de Trump, ocultando que o mesmo era praticado pela própria rede Globo. Talvez isso seja mais evidente para os observadores não fanáticos e não tão alienados que, olhando em retrospectiva, consigam ver a mudança do tom e das notícias que impulsionaram o governo Temer, seguido de um flerte com o bolsonarismo e depois do shift total para contra Bolsonaro, quando ficou claro que o candidato estava interessado em um golpe que deixaria a emissora de fora do poder (Esta última parte acrescida por mim, visto que o livro é de 2017!)
Sem uma crítica de ideias, não existe prática social verdadeiramente nova. A ideia central que nos faz de tolos é a de que nossa história tem sua raiz no patrimonialismo SOMENTE do Estado.
Aqui coloquei apenas meus grifos, muitas vezes sem contexto ou ligação com o exposto anteriormente. É uma tentativa de voltar rapidamente ao livro e pescar algumas ideias. Uma coisa que me incomodou profundamente foi a exposição e discussão alongada dos problemas sem colocar qualquer caminho claro para uma saída. Talvez, esse não seja o papel do autor, mas escrever o livro sem deixar margem para o que devemos fazer diferente foi meio que uma leitura sem propósito.
Se você está lendo até aqui e conseguiu extrair dessa leitura muito mais do que eu, por favor, deixe um comentário!